30.9.06

Crônica nº 001 - O menino que me fez chorar

O menino que me fez chorar

Brasília, 07 de julho de 2006.



...............Ê dia esse de hoje! Dia de muito trabalho, dia feliz, dia de pagamento. Dias assim são perfeitos para se sentir muito bem, afinal, é sexta-feira! Chego em casa à tardinha, um bom banho quente, abraço, beijo, carinho, conforto. Um sanduíche colossal me completa o estômago, saciedade. É hora de ir para meu curso, conhecimento. Entro no carro que me levará até meu destino com rapidez e segurança. Tudo perfeito. Só me faltava mesmo uma forte emoção.
...............Fecho a porta, chave na ignição, vidro fechado, um vulto repentinamente chama minha atenção, olho para fora através do vidro, um menino, não mais que cinco anos de idade a julgar por sua miudez, me aguardava ansioso. Era franzino, sujinho, esfarrapado, mas lindo em sua imundície. “Deve ser inofensivo.”, pensei. O vidro do carro desce. “Moço, me dá um trocado?”, diz aquele menino de rua ao qual chamarei de Marcelinho, nome que daria a um filho meu.
...............A conversa prossegue:
...............— Pra quê você quer dinheiro?, disse, investigativo.
...............— Pra comprar uma televisão.
...............Aquilo me intrigou sobremaneira. Pra quê raios aquele pequeno quereria uma televisão se nem sequer teria casa onde colocá-la?, pensei.
...............— Onde você mora?
...............— Na invasão ali atrás. Mas num tenho casa não, moço. Moro na rua mesmo.
...............— Cadê seu pai?
...............— Morreu.
...............— Cadê sua mãe?
...............— Tá com o meu padrasto.
...............— Eles estão trabalhando?
...............— Não, moço, eles não trabalham, só pedem esmola no sinal.
...............Aquela resposta me deixou indignado. Como é que pode haver uma situação como a que Marcelinho estava me contando? Que direito as pessoas têm de gerarem filhos e os abandonarem desse jeito totalmente expostos aos perigos das ruas?
...............— Então, ninguém trabalha na sua família?
...............— Não, só eu que trabalho, vigiando carro! — disse Marcelinho com uma ponta de orgulho por seu ofício de vigilante.
...............Que resposta! Aquele pequenino, com sua sinceridade tão direta e simples, se tornara naquele momento um gigante, e de tão gigante, me incomodava. A sensação de garganta entalada e seca me tomou de súbito face àquela resposta. O tempo parou, uma fração de segundos, silêncio, nos contemplamos olho no olho numa espécie de análise mútua. Meu espírito não permitiria que a inércia me impedisse de agir em nosso favor. Marcelinho me olhava suplicante.
...............— Você já comeu hoje? — perguntei.
...............Um meneio com a cabeça respondeu negativamente.
...............Eu não poderia finalizar meu dia saciado enquanto aquele ser tão humano sentia fome. Dane-se a aula! Abri a porta do carro. A felicidade de Marcelinho com este simples gesto e a perspectiva de enfim comer algo aquele dia demonstravam que seu coraçãozinho se enchera de esperança.
...............— Vem comigo menino.
...............Ele parecia ter voltado à infância, perdida há muito pelo sofrimento das ruas. Tagarelava alegremente me seguindo até à padaria do outro lado da rua. Comprei-lhe um baita naco de pudim de leite que, segundo a senhora do caixa era “puro mingau” e saciaria tanto sua fome quanto seu paladar de criança.
...............Aquela visão de cara lambuzada de pudim, os dedinhos sujos segurando aquele alimento tão gostoso, me agradou muito o espírito, me lavou a alma, agora eu é que explodia de felicidade.
...............Depois de devorar o pudim, retornamos ao estacionamento onde tudo começou. Entro no carro, desço o vidro todo antes de fechar a porta, Marcelinho pousou com dificuldade o queixo na beirada da porta, tão pequenino era, mas isso não importava, ele me olhava com contentamento ali do lado de fora. Passei a mão paternalmente em seus cabelos. “Vai com Deus, menino” — disse com o peito apertado.
...............Ele não me agradeceu. Não importava, seu leve sorriso e os olhinhos brilhantes já me bastavam. Virei-me procurando com a chave a ignição, ao me virar novamente para fora Marcelinho já havia desaparecido, ganhado mais uma vez as ruas, o mundo...
...............Suspirei, fechei a janela, estava frio, já era noite. Saí com o carro. Uma multidão de pensamentos me atordoava. Fiquei confuso. As emoções ao meu redor eram avassaladoras. Não conseguia distingüir se sentia tristeza ou felicidade, inquietude ou conforto, indignação ou complacência. Aquela havia sido uma experiência muito forte. A imagem de Marcelinho, expondo aquela realidade tão cruel, flutuava à minha frente, me arrasava. Não suportei, era demais para mim. Chorei. Chorei, pois me dei conta de que não existia só um Marcelinho, mas muitos outros que sobreviviam à crueldade fria e injusta das ruas. Imaginei crianças indefesas que nunca teriam a chance de freqüentar uma escola, nunca teriam casa, comida e amor, e que nunca viveriam uma infância digna por estarem sempre à margem da sociedade. Chorei.
...............Agora um sentimento profundo de gratidão me invade. Obrigado, Marcelinho, obrigado por me fazer chorar e por ter me proporcionado uma emoção tão forte que cá estou eu, de olhos inundados, finalizando minha primeira crônica, que é dedicada a você anjo, menino de rua.



******************************
********************
**********


Texto revisado pelo Professor Fernando Moura
do curso Obcursos de Brasília/DF


Se necessário consulte na coluna ao lado as instruções para postar um comentário.

Não deixe de ler também minhas outras crônicas acessando-as pela coluna ao lado!

10.9.06

Crônica nº 003 - O Cálculo

O cálculo

Brasília, 15 de julho de 2006.


...............A Era Moderna, fruto da Revolução Industrial, trouxe consigo novas ameaças à saúde e à paz das pessoas. Segundo os médicos, a má alimentação associada aos nocivos hábitos de vida do homem do século XXI, tais como sedentarismo e tabagismo, geram "stress", acúmulo de gordura visceral, aumento das taxas de colesterol ruim no sangue e diversos outros problemas de saúde. Um desses problemas do homem moderno é o famoso e temido cálculo renal, popularmente conhecido como “pedra nos rins”.
...............Cálculo renal. Este simples termo médico pode arrancar calafrios de muitas pessoas que já por ele se atreveram a aventurar. Impressiona seu surgimento dentro do corpo humano. Uma pedra, literalmente uma pedra, como lá foi parar?
...............O cálculo surge no organismo dentro do rim pelo acúmulo de detritos sólidos microscópicos resultantes da poderosa capacidade de filtrar o sangue, função típica desse órgão do sistema urinário humano. Esse acúmulo de partículas de oxalato de cálcio e outras substâncias do gênero cria uma pequena pedrinha que cresce como bola de neve e que, por ser um corpo estranho ao organismo, cedo ou tarde por ele será eliminada.
...............Nesse paciente e silencioso processo de crescimento imperceptível ao ser humano, o cálculo perverso e ansioso vai se preparando estrategicamente para seu ataque fulminante e, quando decide imponente se livrar do cárcere renal onde se encontra para ganhar mundo através do vaso sanitário, não tem piedade. Manifesta-se repentinamente em dores terríveis, pegando de surpresa a pessoa que o hospedou por tanto tempo.
...............Nesse letárgico processo de excreção, o cálculo passa vorazmente pelo ureter. É nessa hora que o acometido sente a cruel e incisiva cólica renal. Não há posição em que se sinta um mínimo alívio, os espasmos são gerais. O dito popular de que “homem não chora”, nesse momento vai por água abaixo, ou melhor dizendo, por lágrima abaixo. Mulheres que já a sentiram dizem ser esta dor comparável à dor do parto. Eu nunca pari um filho, mas já uma linda pedrinha. Concluo que no meu caso a sorte de não ser mulher e não ter que passar por um parto pouco fez diferença. Certa vez um médico descreveu-me didaticamente à moda de Lula a origem da tão severa agonia: "O cálculo passando pelo seu ureter é o mesmo que um tijolo passando por um canudinho." Ai, que dor! É de causar calafrios.
...............Em cidades de clima seco, como a capital, Brasília, a incidência de cálculo renal é ainda mais acentuada. Nos meses mais secos do ano a grande maioria dos atendimentos nos pronto-socorros tem como diagnóstico o cálculo renal. As pessoas transpiram sem sequer perceber que o fazem, pois o suor seca antes mesmo de se condensar sobre a pele. A conseqüência disso é uma maior viscosidade sangüínea e a urina mais condensada, ou seja, mais impurezas a acumular e pouco fluxo de líquidos para seu escoamento.
...............No passado, esse problema renal não era tão comum quanto é hoje em dia. Os métodos para combatê-lo eram embasados na sabedoria popular e na medicina alternativa. Não raro um conhecido tinha uma receita infalível para aniquilar as tais pedras nos rins. Chá de Quebra-Pedra, Candurana e outras ervas, beber duas cervejas diariamente e até mesmo, quando durante a cólica, tomar uma colher de chá de azeite de oliva português – que segundo meu avô, fazia a pedra “escorregar mais fácil”. Embora toda essa profusão cultural, o sofrimento era garantido.
...............Atualmente, a solução mais adotada pelos urologistas ao diagnosticarem o cálculo renal é a intervenção cirúrgica. Com os avanços tecnológicos da medicina, aparelhos cada vez mais compactos e poderosos, porém menos agressivos, utilizam a via ureteral para acessar o cálculo onde quer que ele se encontre no sistema urinário e com o uso de fibras ópticas, ultra-som ou laser o fragmentam em partículas bem menores que são em seguida expelidas facilmente.
...............A intervenção cirúrgica, porém, somente remove o cálculo pré-existente, fato que não impede o surgimento de novos cálculos. Por isso, o melhor mesmo é não ter com o vilão. A receita é simples: levar uma vida mais saudável, ter uma alimentação rica em vegetais, com pouco sal e livre de gordura animal e adotar a ingestão periódica de água. Essas são atitudes eficazes para evitar surpresas desagradáveis, por exemplo, uma visita ao médico plantonista no pronto-socorro do hospital mais próximo durante uma fria madrugada de domingo.


******************************
********************
**********


Texto revisado pelo Professor Fernando Moura
do curso Obcursos de Brasília/DF


Se necessário consulte na coluna ao lado as instruções para postar um comentário.

Não deixe de ler também minhas outras crônicas acessando-as pela coluna ao lado!