10.8.06

Comentário nº 001 - Vidas Secas

Há alguns meses terminei a leitura deste maravilhoso clássico da literatura brasileira. Graciliano Ramos nesta obra prima narra a encantadora e surpreendente saga de uma família que foge da seca caminhando pelos sertões numa jornada cheia de sofrimentos, conquistas, momentos de triteza e alegria.

O modo como Graciliano coloca as palavras neste livro é de impressionar o leitor. Ele lança mão do vocabulário rudimentar do cerrado e da vida simples do sertanejo. Mas não pense o leitor que Vidas Secas é fácil leitura. Graciliano utiliza uma linguagem bem regional e rebuscada em suas descrições e narrações ao longo do texto. Faz-se necessário eventualmente o auxílio de um bom dicionário mas nada que atrapalhe o entendimento do que o autor expressa.

O momento mais chocante e emocionante desta obra é aquele no qual a cachorra Baleia, na minha opinião o mais significativo personagem do livro, com muito pesar de Fabiano, seu dono e pai da família, é por ele sacrificada. Graciliano neste ponto se superou, a riqueza de detalhes nos faz no decorrer da leitura vizualizar a cena da execução da cadelinha como se estivéssemos assistindo-a ao vivo, sentindo os cheiros, os sons, mesmo aqueles mais discretos, e acima de tudo, se emocionar com os pensamentos humanos de Baleia em sua agonia. É de arrepiar.

Graciliano Ramos, relata esse trecho do livro em uma carta à sua esposa. Suas palavras:

"Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil, como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. Exatamente como o que todos nós desejamos. (...) No fundo todos somos como a minha cachorra Baleia e esperamos preás."

Excelente pergunta, cães têm alma? Ou melhor dizendo: Cachorro é gente?

Recomendo fortemente a leitura de Vidas Secas. Realmente um livro que deixa marcas na vida de seus leitores.

Aqui vai um trecho que eu achei o melhor de todos. Gostaria de salientar a riqueza de detalhes que Graciliano consegue expressar com tão poucas palavras, e também a variedade de sentimentos da cachorra Baleia, que é praticamente gente nesta obra, veja só que beleza:

"Labaredas lamberam as achas de angico, esmoreceram, tornaram a levantar-se e espalharam por entre as pedras. Sinha Vitória aprumou o espinhaço e agitou o abano. Uma chuva de faíscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, que se enroscava no calor e cochilava embalada pelas emanações da comida.
Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pêlo e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras imitando gente. Mas sinha Vitória não queria saber de elogios.
- Arreda!
Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos revolucionários."


É ou não é de se emocionar ?

Daniel Duarte Ramos


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7.8.06

Crônica nº 005 - O Sono do Velho

O Sono do Velho

Brasília, 07 de agosto de 2006.

Lembro-me perfeitamente daquela porteira branca feita de finos tubos metálicos, mas muito resistentes, trespassados em forma de um grande xis, que emoldurada à paisagem rural do interior de Minas Gerais completava harmonicamente aquele cenário rústico e encantador.

Sempre que passava pela porteira branca vinha-me a lembrança do dia em que meu avô com muita alegria instalou-a. Que canseira! A porteira, ao ser aberta, deveria voltar até o batente e se travar automaticamente com o artifício da força da gravidade e de um engenhoso fecho. Vovô, incansável, submeteu a porteira a uma série de testes e ajustes até que ela estivesse funcionando perfeitamente de modo quem a abrisse não mais precisaria esperar junto dela o carro passar para depois fechá-la manualmente. Por fim ao aproximar-se do meio dia daquela linda manhã de sol arregalado, vovô com uma tímida e familiar risada de satisfação deu como instalada a porteira: — Agora podemos ir almoçar. E eu em resposta bradei: —Viva! E então toda vez que íamos à roça passando a porteira branca, vovô como de costume olhava para trás pelo vidro empoeirado do carro e mais uma vez confirmava nosso bom trabalho de regulagem ao ver a porteira fechar e se travar: — Bom, muito bom!

Passando a porteira havia uma estradinha tortuosa que finalizava com uma curva à direita um pouco íngreme e perigosa. O chão tinha pequenas pedras de cascalho sobre a dura terra batida. Nas laterais havia paredes de terra quase verticais, como se um pequeno morro tivesse sido recortado para a passagem da estradinha. Podia-se observar naquelas paredes as raízes de árvores retorcidas típicas da mata nativa da região, também grandes buracos que, segundo meu avô, eram ninhos de cobras. A margem esquerda da estrada era o perigo maior, grandes rasgos no chão, erosões devido à água da chuva lavando o solo, o temor de que a roda do carro ali caísse era de dar calafrios.

O final dessa curva propiciava a reconfortante visão do nosso destino, a casinha branca bem ao fundo de um grande descampado com mato às vezes alto, às vezes baixo de acordo com a época das chuvas ou da seca, sobre o verde duas listras marrons e sinuosas da largura dos pneus do carro, era o caminho que nos levaria até a porta da fazendinha. Ali ao longe, repousavam os trilhos do trem de ferro onde os primos de todas as idades e algum adulto mais curioso admiravam quando o trem passava gigante e imponente, eram tantos vagões que os mais novos sempre perdiam as contas.

A entrada da roça do vovô ficava uns cem metros à frente, era um lugar extremamente rústico. Bem na entrada havia um curral feito com grossas toras de madeira, era pequeno, estimo que caberiam ali no máximo cinco bovinos. Poucas vezes aquela benfeitoria fora utilizada e as toras já estavam ressecadas e retorcidas. Ao lado do curralito uma árvore mirrada, mas suficientemente alta para prover sombra para o carro. Eu sempre estacionava ali para descarregarmos o porta-malas, eram ferramentas, sementes, materias e outras necessidades para o dia, além da comida para o almoço. Naquele lugar o som silencioso da brisa e o ar puro contornando a pele nos causavam confortáveis arrepios.

Era início da tarde, o sol começava a se por pacientemente e logo se esconderia por detrás da casinha, a vegetação ensolarada era ainda mais verde e o calor bem ameno permitia que eu ficasse de peito nu após o duro trabalho da manhã, consertando cercas, derrubando árvores a machadadas, capinando aqui e ali sempre auxiliando e atendendo os pedidos de vovô.

Próximo da casa, uma portinhola interrompia uma cerca de arame farpado enferrujado atarrachado a postes de madeira das mesmas árvores retorcidas da região, bem ali naquela cerca, dependurada, balançava ao vento uma placa branca com as inscrições “Fazenda Santa Luzia” pintadas à mão em tinta preta. A portinhola dava acesso à área bem em frente à porta de entrada da casa que estava entreaberta.

Era uma casinha simples, e eu adorava ficar ali observando sua simplicidade. Na fachada uma porta de madeira azul claro entre duas janelas também de madeira e de igual cor. Debaixo da janela da esquerda, junto à parede branca pintada à cal amarronzada pelo tempo, um comprido banco que se resumia a uma grossa tábua sobre três tocos de madeira. A tábua se empenara pela ação do tempo e gangorrava os que nela sentavam. Do outro lado tinha a cisterna onde os netos de vovô disputavam quem seria o próximo “felizardo” a retirar a água puxando uma corda dura até sair o balde transbordando. Próximo uma piazinha de pedra branca. Ali estrategicamente localizada para já receber a água que saída da cisterna. Nela descansavam copos e talheres usados. Mais abaixo dali havia um pomar, com limoeiros, laranjeiras, mangueiras, jabuticabeiras, pés de romã e goiaba que sempre abasteciam a saudável sobremesa do campo.

No chão ao pé da porta se camuflava uma latinha enferrujada que passava totalmente despercebida aos olhos dos outros. Nela vovô escondia a chave da porta de entrada e poucos sabiam desse segredo. Internamente o casebre tinha três cômodos, no primeiro espantava-se logo na entrada, pois um grande plástico metálico de embrulho de ovo de páscoa bem aberto dependurava-se do teto, servia para espantar os morcegos, segundo a sapiência de meu avô, ali ao fundo uma portinha levava a um banheiro. O cômodo era a cozinha, a despensa onde se guardava de tudo e eventualmente fazia as vezes de sala de estar por haver ali um sofá todo rasgado e com o esqueleto à mostra. Junto à janela estava o fogão azul, bem velho, com certeza doação de algum membro da família que comprara um novo, sobre ele uma frigideira com restos de cebola picada em rodelas, uma panela com arroz e outra com feijão ainda mornos do almoço de há pouco. Na parede logo acima do fogão uma prateleira cheia de latinhas velhas amassadas, sabe-se lá o que continham, também fósforos, um pacote de velas, lamparinas e vidros vazios. A mesa no centro do cômodo viera de minha casa da época em que eu era criança, abrigava um monte de latas e sacos de papel e uma velha moringa de barro com a qual colhíamos água fresquinha da bica lá embaixo na horta de terra preta, e dois pratos e talheres recentemente usados.

Em pé sob o portal de entrada olho à esquerda para o outro cômodo, somente uma das folhas da janela estava aberta e deixava a claridade iluminar o quarto. Uma cama de casal caindo aos pedaços, não tinha colchão, somente duas lâminas de papelão bem grosso forravam o estrado, vi meu avô, um velho ali sentado, com as pernas estiradas e os braços moles repousados sobre as coxas. Estava recostado à cabeceira da cama, com a cabeça caída para o lado, o rosto ainda suportava os pesados óculos de grosso acrílico transparente pendendo pela ponta do nariz. O velho dormia profundamente após saciar-se do almoço que eu lhe havia preparado, as botas “sete léguas” de borracha preta no chão ao lado, o chapéu de palha surrado repousava sobre o papelão da cama, as pernas da calça marrom de brim arregaçadas até os joelhos mostravam sua pele bem morena e os pés calejados, sua camisa de manga curta tinha dois ou três botões abertos para refrescar o peito à brisa da tarde. Ouvia-se somente o zunido das moscas e o farfalhar das folhas das árvores ao vento lá fora. Finos raios de sol que passavam por entre as telhas quebradas e mal encaixadas rasgavam o ar empoeirado apresentando uma letárgica dança de partículas perambulantes. O cheiro de mato e poeira remetia à vida da roça pacata e desprovida de luxos.

A visão daquele velho a quem tanto admirava e respeitava ali entregue a um sono tão tranqüilo trazia-me um sentimento de paz envolvente e relaxante que me aliviava o peso e me fazia levitar como uma pena ao deleite do vento subindo às alturas num corpo leve e flutuante.
Inspirando profundamente com meus olhos então cerrados para sentir com plenitude aquele ar puro entrando em meus pulmões perdi a noção de tempo e espaço, os minutos pareciam eternos, percebi que a felicidade que aquela paz proporcionava reconfortava meu corpo e de repente um discreto sorriso estampado nos lábios pela contemplação daquela pintura real me fez perceber naquele momento que eu era sim uma pessoa feliz.

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